“10 de fevereiro de 1995
Jaime,
Sou uma pessoa solitária. Mesmo acompanhada, sinto-me só. É minha natureza, não sei que espírito ruim me possui, ou quais os males que estou pagando, só sei que não consigo viver feliz. E nem mais quero, pois sinto-me totalmente despreparada e sem talento para a paz. O que tenho é tédio, tédio de tudo e tudo mais. Quero dormir, mas não consigo. Quero levantar-me e andar léguas, mas um sono incontrolável se apodera de mim. Sou assim. Uma pessoa que, por algum motivo misterioso, aprendeu a sofrer e, gostando ou não, viverá sempre assim: sofrendo. Nenhum motivo mais será necessário, nenhuma dor, nenhuma perda. Apenas o dormir ou não dormir, o acordar e o nada a fazer, além de ficar na cama pensando sobre os meus pés e os pés de toda a humanidade. Eu, que nenhum talento possuo, que passarei pela vida sem ter cometido uma grande obra. Sem ser herói ou assassino. Passarei pelo mundo como os milhões que já passaram, os bilhões, trilhões de desconhecidos que não tiveram nada para deixar pro futuro. Milhares de rostos na sombra, no limbo. Cada qual dependendo de filhos, netos, bisnetos e tudo o mais, para serem relembrados. Porém a memória da vida de um homem médio não dura mais que três ou quatro gerações. Algumas pessoas são imediatamente esquecidas quando partem.
Partem para onde? Para onde eu irei quando morrer? Os que têm filhos vão para os porta-retratos. Viram mártires, porque os mortos são santos. Os mortos que têm família tornam-se flores num jarro. Retratos pintados à mão. Tornam-se algumas histórias engraçadas ou comoventes. Os mortos são dia de finados, dia de aniversário, Natal e nada mais. Mas já é alguma coisa. Mesmo que isso seja tudo o que uma pessoa ganha por ter vivido setenta anos ou mais, é alguma coisa. E para mim, o que sobrará de minha existência quando ela não mais existir? Isso! Não mais existirá. Nada. Nenhum filho ingrato a curar suas culpas, indo colocar flores no jarro sobre a minha lápide. Nenhum amor sofrendo; pela lembrança de minha juventude. Nem amigos contando histórias sobre porres inesquecíveis. Nada. Um dia encontrarão algumas fotos e cartões-postais numa caixa de madeira velha. Encontrarão restos de mim, em papel e anotações. Talvez um corretor imobiliário encontre minhas lembranças todas dentro de uma caixa velha de papelão. Um dia, talvez uma jovem curiosa, mexendo em papéis velhos numa feira de antiguidades, encontre fotos minhas. Eu, com minha prepotência e alma de escritor. Que nunca escrevi uma só linha que prestasse. Ali, na caixa de madeira ou papelão. Fotos de uma mulher que nunca quis ter filhos e não os teve. Fotos de uma mulher que não cultivou amigos, nem amantes eternos.
Rasgarei todas as minhas fotos quando sentir a morte chegar. Peço a algum Deus, caso exista e esteja me escutando: avise-me quando a morte estiver em meu encalço! Não serei eterna como aqueles que fizeram algo estrondoso. Não sou Proust, não sou Hitler, não sou nem mesmo o papagaio do Pirata da Perna de Pau. Sou Ana Delfina Amaral. Uma mulher que tem o nome nobre e talvez a alma também. Não tive pai para amar, tive mãe para odiar e algumas paixões. Sou Ana e pretendo rasgar as minhas fotos antes de morrer.
Desculpa,
Ana.”
YOUNG, Fernanda. Vergonha dos Pés. 1996. Página 263/265.
me apaixonei por essa peça, e por esse trecho do texto. recomendo a peça, q esta em cartaz no Rio.