Que é amor?
Amor é uma paixão natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da lembrança obsedante dessa beleza. Passamos a desejar, acima de tudo, estar nos braços do outro e a desejar que, nesse contato, sejam respeitados por vontade comum todos os mandamentos do amor.
Fácil é ver que o amor é uma paixão. Isto porque angústia nenhuma é maior que a provocada por ele, pois o enamorado está sempre no temor de que sua paixão não atinja o resultado desejado e de que seus esforços sejam baldados. Teme também o falatório da multidão e tudo o que, de uma maneira ou de outra, possa prejudicar seu amor, pois é bem freqüente que uma perturbação mínima impeça de levar a bom termo o que se ia consumar. Se o enamorado é pobre, teme que a amada vilipendie sua penúria; se é feio, tem que ela despreze seu físico ingrato ou que procure o amor de alguém mais belo; se é rico, teme que sua passada parcimônia acabe por reverter em prejuízo; e, para dizer a verdade, não há ninguém que possa contar em minúcias os temores do enamorado.
Essa espécie de amor é, pois, uma paixão não recíproca que se pode chamar de “amor singular”.
Mas, uma vez correspondido o amor, as angústias que surgem não são menores; porque cada um dos dois amantes teme perder, pela ação de um terceiro, aquilo que conquistou com tanto esforço; situação bem mais penosa para todo homem é ver seus esforços baldados, contrariando-lhe as esperanças: suportamos bem menos a perda de coisas que acreditávamos obter do que a privação de um ganho que apenas esperávamos. O amante também tem medo de ofender a amada de uma maneira ou de outra, e seus temores são tão numerosos que é bem difícil relacioná-los. Pois, essa paixão é inata, e te mostrarei com clareza, se estiveres buscando escrupulosamente a verdade, por que ela não nasce de ação alguma, mas apenas de reflexão do espírito sobre aquilo que se vê. Isto porque, quando vê que uma mulher é digna de ser amada e convém a seu gosto, o homem logo começa a desejá-la em seu coração; depois, quanto mais pensa nela, mais se abrasa de amor por ela, até que seu pensamento seja todo invadido por esse amor. Logo começa ele a imaginar o modo como ela é feita, a delinear seus membros, a conjeturar suas ocupações; procura penetrar os segredos de seu corpo e deseja possuir cada uma de suas partes sem exceção.
Quando esses pensamentos chegam a tomar conta dele por inteiro, já não há como frear o amor, e ele passa de pronto à ação; o enamorado procura obter um apoio, descobrir um mensageiro. Começa a cismar modos de vir a estar nas boas graças de quem ama, busca lugar e momento propícios à conversação, e um breve instante é para ele um ano interminável, pois nada é feito com suficiente presteza para seu espírito impaciente; e muitas coisas, como se sabe, assim se passam com ele. Essa paixão inata procede, pois, da visão e da reflexão. E não é qualquer reflexão suficiente para engendrar o amor: cumpre que seja descomedida, pois se moderada geralmente não obceca o espírito e não pode dar origem a essa paixão.
CAPELÃO, André. Tratado do Amor Cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000. pp. 5-9